Percorrer ruas, praças e espaços do Centro Histórico de João Pessoa com um novo olhar, atento às marcas da cultura e às memórias de resistências da população negra. Essa é a proposta da Apuama, agência de afroturismo idealizada pelo artista visual e design Felipe Coutinho, paraibano que se confessa apaixonado por sua terra e orgulhoso de ter sangue negro e indígena correndo nas veias. Nos roteiros que conduz, ele entrelaça a herança ancestral às narrativas invisibilizadas dos povos negros em busca de ressignificar espaços, resgatar memórias, promover a conscientização e valorizar a cultura afro-brasileira.

Agência de afroturismo idealizada pelo artista Felipe Coutinho acolhe três iniciativas na capital paraibana: “Caminhada Jampa Negra”, cujo percurso inclui visita a espaços como o Centro Cultural São Francisco; rota “Sankofa Parahyba”, percorrendo os passos de figuras negras; e “Raízes do Catolicismo Negro”, com visitas a igrejas vinculadas a irmandades de negros e pardos, com maracatu e roda de coco | Fotos: Arquivo/Apuama – Foto: Caio_Arruda
“As vivências de afroturismo que realizamos têm como intuito trazer um turismo pedagógico, embasado em uma educação antirracista e na história pública. Com isso, a gente apresenta narrativas que os livros de história não contam, aprofundando, a partir de um olhar da população afro-indígena, aquilo que foi apagado durante os séculos. É pensar que cada pedra que foi colocada numa cidade histórica como João Pessoa teve mão de obra escravizada indígena e negra e que essas pessoas deixaram elementos de sua cultura nestes espaços”, explica Felipe, que guia três rotas no Centro da capital paraibana e está para lançar uma nova, no próximo mês.

rota “Sankofa Parahyba”
O primeiro desses roteiros é a Caminhada Jampa Negra, que nasceu por iniciativa do professor de história Danilo Silva e da turismóloga Bárbara Tenório, há cerca de cinco anos. Como os idealizadores se mudaram para fora do estado, Felipe deu continuidade ao percurso, que inclui visita a espaços como o Centro Cultural São Francisco, onde podem ser vistos elementos identificados da cultura Iorubá na fachada por trás da igreja, e passeio pela Rua Nova, atual General Osório, considerada ponto de encontro dos capoeiristas no século 19.
A rota Sankofa Parahyba é um convite a percorrer os passos de figuras negras, como o escravizado Manuel, o abolicionista Cardoso Vieira e o pai da cenografia brasileira, o paraibano Tomás Santa Rosa. Felipe explica que sankofa é um elemento da escrita visual adinkra, utilizado pelo povo akan, etnia da região que hoje é o país de Gana, e que pode ser encontrado na arquitetura de várias cidades históricas, cujo significado remete à sabedoria africana de voltar ao passado para ressignificá-lo, aprendendo com o que ficou para trás.
“A gente vai identificando alguns elementos adinkra nos gradeados desde a Basílica de Nossa Senhora das Neves, que é o ponto inicial dessa vivência, passando pelo Bistrô 17 e alguns sobrados e casarões na Rua da Areia. A sankofa é esse chamamento para a gente explicar o que são esses símbolos e dizer o significado e a influência dos povos africanos dentro da nossa arquitetura”, esclarece o guia.
A Rua do Grude (Praça Coronel Antônio Pessoa), espaço onde grupos de maracatu e coco de roda se apresentavam, é o ponto de encontro para a terceira rota, que explora as Raízes do Catolicismo Negro. O percurso também passa por locais onde existiam duas igrejas católicas vinculadas a irmandades de negros e pardos.
Rotas pela PB e novo projeto
A quarta vivência, que Felipe lançará em novembro, será chamada Marcelino: caminhos de resistência, liberdade e encruzilhadas. A rota procura reconstruir os trajetos e as histórias desse escravizado do Engenho da Graça, que costumava se refugiar onde hoje é o Cemitério Boa Sentença — na época, o local onde os negros libertos viviam.
Os passeios foram pensados inicialmente tendo os turistas como público-alvo, mas, nos últimos anos, Felipe Coutinho tem buscado investir em experiências voltadas para estudantes de escolas públicas, por meio de editais e parcerias. Além das vivências na capital, a agência de afroturismo realiza rotas junto a comunidades quilombolas, indígenas e povos de terreiros nas cidades paraibanas de Areia, Conde e Alhandra, Rio Tinto e Mamanguape.
Coutinho relata que os visitantes se impressionam quando percebem a conexão entre passado e presente. “Eu trago a história de Gertrude Maria, a primeira mulher negra que lutou pelo seu direito à liberdade, lá no início do século 19, mas quantas mulheres negras não estão, neste momento, passando pelo mesmo processo de tentar se libertar. Trazer essas histórias para mais próximo da gente deixa as pessoas impactadas, porque normalmente elas passam despercebidas”, reflete.

Apresentação desse | Fotos: Caio Fernandes/Apuama seguimento nos 440 anos da capital, a performance da atriz Norma Goes, que teve como encenação temática o extermínio de jovens negros
A construção das vivências e rotas envolve um trabalho de pesquisa de historiadores que investigam a população negra e indígena na Paraíba, assim como um olhar crítico sobre as narrativas eurocêntricas predominantes na literatura histórica oficial. Uma das fontes que Felipe Coutinho faz questão de referenciar é a professora de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Solange Rocha. A pesquisadora, que integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro–Brasileiros e Indígenas (Neabi) esteve envolvida nas primeiras iniciativas de aulas públicas, realizadas na Praça Rio Branco, onde ficava o pelourinho (atual local do Sabadinho Bom), que buscava demarcar a presença negra na capital paraibana.
“A população precisa conhecer as violências do sistema escravista, mas, para além disso, que em tal sociedade houve pessoas livres das camadas médias como Eliseu César (1871–1923), um intelectual que exerceu a vida política desde cedo, como abolicionista, e depois integrou a Federação de Homens de Cor (defesa da República), exercendo cargos variados (professor, escritor, deputado provincial no Pará etc.)”, destaca a docente.
Visibilizar essas e outras histórias significa, segundo a professora, mostrar que nem todas as pessoas negras eram escravizadas e, ao mesmo tempo, visibilizar as ações de resistências para minar a escravidão. As rotas turísticas da história afro-brasileira, desenvolvidas de forma contínua, tornam-se, então, uma oportunidade para que mais pessoas possam conhecer e refletir sobre a participação do povo negro na construção da sociedade que temos hoje.
As rotas e vivências afro-indígenas promovidas pela Apuama acontecem regularmente e são divulgadas com até 15 dias de antecedência, mas a agência também atende a pedidos sob demanda. Datas, horários e mais informações específicas sobre cada roteiro podem ser encontradas no site oficial.