Cercados por parques eólicos e solares no seridó paraibano, famílias enfrentam o breu da noite para chegarem à casa de Zuíla Santos, 53.
A líder do Quilombo da Pitombeira recebe as visitas para falar sobre os problemas vividos na comunidade que ocupa 354 hectares no município de Várzea. Alguns deles são causados, segundo Zuíla, pelos parques eólicos e solares.
“É como na época da colonização do Brasil. [Os colonizadores] trazem uns presentinhos e querem que a gente entregue tudo”, afirma.
As queixas que apresentam são comuns às de outro quilombo da região: o Serra do Talhado, em Santa Luzia.
Ambos são centenários e cortados por ventos constantes que são o ouro de usinas eólicas, por seu potencial energético. Explosões para instalações dos parques racharam casas, quebraram cisternas e mexeram com o habitat de animais selvagens. Eles passaram a invadir as comunidades em busca de alimentos.
“Já matei umas dez jararacas [na propriedade]. Os parques acham que as cisternas são para a gente usar na plantação. Não fazem ideia de que é a nossa água para consumo humano”, completa.
“As explosões, desmatamento, invasões de animais mudaram a vida da comunidade. Neste ano, já passou a época das chuvas e não captamos água. Tivemos de pedir 12 mil litros à prefeitura para durar um mês. A explosão vem de baixo para cima. O piso fica todo fofo e a água some”, concorda Marinalva dos Santos, 45, agente comunitária de saúde e presidente da Associação Comunitária Quilombolas Serra do Talhado Rural.
Os quilombos não estão dentro dos territórios dos parques eólico Chafariz, do solar Luzia (ambos da Neoenergia) e do complexo solar Santa Luzia (do grupo Rio Alto). Mas como são vizinhos, sentem os efeitos da mudança da paisagem no sertão da Paraíba, no coração do que passou a ser chamado de “corredor dos ventos” no estado.
É algo que incomoda tanto que qualquer observação de um forasteiro sobre a beleza das montanhas com os aerogeradores em funcionamento causa reações.
“Não tem nada de bonito”, ouviu a reportagem da Folha de S.Paulo mais de uma vez.
As duas empresas afirmam desconhecer as reclamações. O Grupo Rio Alto diz em nota que as rachaduras em casas e cisternas estão “provavelmente relacionadas ao complexo solar Luzia (…) Estamos a mais de 2 km de distância da comunidade.”. Declara também não ter recebido qualquer relato a respeito de animais selvagens. A companhia possui canais abertos com as comunidades para ouvir reclamações, garante.
A Neoenergia assegura que, em caso de dano a cisternas ou qualquer estrutura, é providenciado “reparo ou indenização”, a depender de cada caso. Quando acontece isso, completa, é fornecida água ao morador. Afirma que o Quilombo da Pitombeira está a cinco quilômetros do parque solar Luzia e que seu relacionamento com as comunidades locais é considerado modelo no mercado.
“A Neoenergia prioriza a ética, a transparência e as boas relações de compliance em suas práticas de negócio, adotando padrões internacionais de governança, promovendo um ambiente íntegro e de intolerância à corrupção”, declara a empresa, por meio de sua assessoria de imprensa. Ela ressalta também que, ao contrário de concorrentes, é responsável por todo o planejamento, execução e operação do projeto, o que facilitaria o contato com as comunidades.
A Paraíba é exemplo de fenômeno que começa a aparecer em diferentes estados nordestinos: a resistência aos parques de energias renováveis. No caso das eólicas, os trabalhadores que vêm de fora são chamados de “filhos do vento.”
“As empresas não entendem e não querem entender o que é o semiárido. Acham que aqui não nasce nada, é uma terra sem valor e podem fazer o que quiserem”, opina José de Arimateia, 47, especializado em ciências agrárias, morador da região de Santa Luzia e ativista.
Ele se indigna com uma visão partilhada por diferentes companhias do setor: que a energia renovável chegou para salvar um território que vivia crescente processo de desertificação. As áreas mais altas, de planície, foram as que sobraram para os povos tradicionais, os quilombolas e os animais viverem. Eles haviam sido excluídos do planalto, onde as terras eram mais ricas e produtivas.
Os locais elevados são os cobiçados pelas eólicas. Basta chegar ao Quilombo Serra do Talhado para entender o motivo. O vento é inclemente. Os moradores relatam que aquele é o clima permanente, uma Disneylândia para aerogeradores.
“O expediente usado por essas empresas em todo Nordeste, para nós, é um novo formato de grilagem de terra”, acusa Arimateia.
Apesar da sondagem de emissários de corporações interessadas em arrendamentos de terras, comunidades têm se movimentado para recusar as ofertas. Isso é mais fácil quando associações de moradores conseguem um consenso.
“Há três meses passaram pela última vez. Respondi que a nossa comunidade não tinha interesse e isso havia sido decidido em votação. É algo que traz uma malquerença”, argumenta José Luiz da Silva Júnior, 48, líder do assentamento São Francisco 3, em Solânea, na Borborema, no interior da Paraíba, onde moram 55 famílias.
A resistência vai além da forma como as empresas chegam nas comunidades e dos contratos oferecidos. Trata-se de contrariedade com o modelo de negócio.
A oposição é montada em reuniões de sindicatos, associações de moradores e ações de entidades não governamentais. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais da região da Borborema vai em diferentes comunidades para falar do que considera os problemas dos acordos com as empresas eólicas.
“É um assédio porque as empresas desqualificam o que o agricultor faz e dizem que o que trazem é o progresso. É como se o dinheiro resolvesse tudo. Dividem comunidades porque quando a associação [de moradores] rejeita, vão individualmente. As mulheres estão no centro da resistência. [As companhias] Chegam e acham que a região é habitada por gente que vive nas trevas, cozinha no fogo…”, afirma Adriana Galvão Freire, uma das assessoras da AS-PT, organizadora da Marcha das Mulheres em prol da Agroecologia, realizada anualmente.
Há o medo de que o cultivo de alimentos fora dos grandes latifúndios seja descaracterizado na região. Existem viveiros para distribuir milhares de mudas para plantações. Alguns têm como finalidade a venda das plantas, o que proporciona renda de R$ 10 mil por ano. Segundo moradores locais, é mais do que vários pequenos agricultores recebem por contratos de arrendamento com empresas eólicas e solares.
O que a resistência defende é algo considerado inviável por quem trabalha no setor: criar uma alternativa ao modelo centralizado, em que tudo o que é produzido vai para o mercado livre de energia. Nada fica na comunidade onde estão os aerogeradores e as placas solares.
Uma tentativa é o Comitê de Energias Renováveis do Semiárido. Em Patos, na Paraíba, foi criada a primeira cooperativa no sertão de energia solar com a construção de uma pequena usina.
A proposta é financiar a instalação de painéis em escolas, hospitais e instituições locais para fazer com que a comunidade pressione autoridades por mais iniciativas iguais. Como se fosse um chamariz. O objetivo central é que a energia gerada na caatinga fique na caatinga.
As empresas do setor alegam que, por causa da legislação, tudo o que é produzido tem de ser enviado para o Sistema Interligado Nacional e, em seguida, distribuído no mercado.
“Queremos um modelo em que a energia fique para as famílias daqui. A gente quer mostrar de maneira pedagógica que é possível gerar energia num novo modelo sem causar impactos na região, como acontecem nesses grandes projetos”, defende José de Anchieta de Assis, 67, integrante do comitê.
No caso das comunidades quilombolas, não há contratos de arrendamento de terra porque isso não seria permitido pelo Incra, mas as que são vizinhas a parques eólicos e solares sofrem os efeitos dos empreendimentos de forma direta.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, em seu artigo 6º, diz que os povos indígenas e tribais deverão ser consultados, “mediante procedimentos apropriados”, cada vez que sejam previstas medidas que os afete diretamente.
“É uma norma internacional que não tem sido respeitada. O Ministério Público Federal fez recomendação para que isso seja analisado”, diz Marcos Faro, 52, funcionário da Divisão de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento do Incra na Paraíba.
O Incra afirma que, quando identificada uma terra quilombola que sofra influência direta de um empreendimento, estabelecerá contato com integrantes da comunidade para organizar oitivas em que os moradores do quilombo serão ouvidos.
O Governo da Paraíba enviou nota em que informa que, por recomendação conjunta com o Ministério Público Federal e Defensoria Pública do estado e da União, foi acordado que o Incra, a quem atribui a responsabilidade, realizaria uma consulta com as comunidades locais no prazo de 60 dias, o que seria procedimento em conformidade com a OIT 169.
“Não havendo apresentação dessa documentação por parte do Incra, a Sudema [Superintendência de Desenvolvimento do Meio Ambiente do Estado] pode dar continuidade ao processo de licenciamento normalmente, o que vem sendo feito”, diz o texto da nota do governo.
Em conversas com a reportagem, nenhum morador dos quilombos da Serra do Talhado e da Pitombeira se lembra de ter sido organizada uma consulta formal a respeito dos parques de energia limpa.
Representante de mais de cem empresas do setor eólico, a Abeeólica afirma ser integrante do Pacto Global da ONU e “tem como princípio trabalhar para uma transição energética justa, tendo participado de discussões e contribuído com estudos e recomendações para a transição energética justa e uma economia de baixo carbono.”
Ressalta que um exemplo prático disso é a criação de um guia de boas práticas para as eólicas para “indicar caminhos por práticas que promovam o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida das comunidades vizinhas aos parques.”
A Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica) diz, em nota, incentivar que seus associados orientem estudos e ações com base nos mais elevados padrões internacionais de ESG. “Estes padrões consideram, por exemplo, que tratativas locais sejam justas e transparentes, em especial com populações mais vulneráveis.”
Procurado pela Folha de S.Paulo, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima não se manifestou.
É uma briga inglória, reclama Zuíla Santos, sentada em sua varanda no Quilombo da Pitombeira. As empresas do setor afirmam procurar trabalhar em conjunto com as comunidades e que desejam vê-las continuar no campo, plantando e produzindo na agricultura alimentar. Consideram distorcida a visão de que são inimigos das pequenas propriedades e da agricultura familiar.
Mas não é assim que a líder quilombola enxerga a situação.
“O que vejo é nós ficarmos com o ônus. Não tem bônus nenhum.”
*ALEX SABINO E ZANONE FRAISSAT/folhapress