Divergências sobre repactuação bilionária de rodovias geram impasse no TCU

O governo federal tem celebrado a repactuação de 14 contratos de rodovias, com a reformulação de acordos assinados com as atuais concessionárias desses trechos as empresas prometem injetar R$ 109 bilhões nas estradas que já administram. O desfecho efetivo dessas negociações, porém, não tem encontrado um caminho fácil no TCU (Tribunal de Contas da União).

Donas de uma série de compromissos não cumpridos nos últimos anos, como duplicações e melhorias de traçado, essas concessões passaram a ser alvo de negociações para analisar a possibilidade de devolução amigável e a realização de novas licitações, por meio da atuação da Secretaria de Consenso criada no TCU.

O objetivo é achar uma solução de problemas mais célere, atendendo ao interesse público, de ter uma rodovia em melhores condições e no menor tempo possível.
Esse consenso, contudo, ainda não está tão claro. Das 14 concessões submetidas ao acordo sob a mediação do tribunal, três foram confirmadas: a Eco101, a Rodovia Fluminense e a MSVia. Nesta última, porém, a discussão descambou para acusações de ilegalidade levantadas por membros do próprio TCU.

A concessionária MSVia administra, desde 2014, a BR-163, em um trecho de 847 km, entre a divisa do Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul, até chegar ao Paraná. No contrato original, a empresa tinha várias obrigações, como a duplicação de 806 km até o quarto ano de concessão e implantação de quatro contornos em pista dupla. Contudo, até hoje, apenas 150 km (18,5%) foram duplicados. Somente 73,7% das restaurações foram feitas e nenhum dos contornos foi executado.

Por causa dessa situação, o governo chegou a iniciar o processo de devolução da concessão, com pedido da própria concessionária. O Ministério dos Transportes e a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) iniciaram estudos de uma nova licitação, prevendo dividir o trecho em dois segmentos.

A alternativa, porém, foi abortada no meio do caminho, porque novas condições contratuais oferecidas à MSVia atraíram a empresa, após negociação intermediada pela Comissão da Secretaria de Consenso. As mudanças trazem flexibilização da tarifa de pedágio e dos gatilhos para aumento de preço, ampliação do prazo da concessão em mais dez anos e revisão da lista de investimentos obrigatórios.

A empresa se comprometeu a investir R$ 12 bilhões, incluindo a duplicação de 68 quilômetros em até três anos, chegando a 183 km até o fim do contrato, além de a construção de uma terceira faixa em outros 191 quilômetros e 72 km de contornos, entre outras melhorias, conforme o aumento da demanda, ao longo do contrato.
Governo e MSVia também declaram que a solução proposta para otimização da concessão “resulta exclusivamente de um processo de solução consensual, que garante a participação ativa e colaborativa de todas as partes envolvidas”.

Em nota à Folha, a MSVia afirmou que “a repactuação da concessão da BR-163/MS é um importante marco, pois, além de solucionar todas as controvérsias existentes, proporcionará modernização e entrega célere de investimentos à população do Mato Grosso do Sul, após a assinatura do aditivo ao contrato”.

Auditores do TCU que participaram da renegociação recomendaram a extinção do contrato, por entenderem que as novas condições estavam, na prática, premiando quem deixou de entregar os compromissos originais. Ressaltaram que “a solução está eivada de ilegalidades porque, em síntese, criará uma nova relação totalmente desvinculada da licitação que deu origem ao contrato, do lance vencedor da licitação”.

O Ministério Público junto ao TCU acompanhou esse entendimento. O ministro do TCU e relator da proposta, Aroldo Cedraz, também viu da mesma forma e votou contra o acordo. “O conteúdo da solução consensual proposta é irremediavelmente ilegal, vez que inconciliável não apenas com a letra da lei, mas também com todo o ordenamento jurídico”, declarou.

Cedraz, porém, foi voto vencido. Outros seis ministros divergiram de seu entendimento e acompanharam a tese defendida pelo ministro Benjamin Zymler, que disse não ver grandes mudanças na proposta, se comparada às outras duas repactuações já aprovadas pela corte –Eco101 e Fluminense–, que tiveram o sinal verde de Cedraz.

Zymler também chamou a atenção para o resultado que, segundo ele, seria mais vantajoso para usuários da rodovia. Cedraz foi procurado pela reportagem, mas não se manifestou sobre o caso.

No comunicado enviado à reportagem, a MSVia disse que “a questão relacionada à legalidade das repactuações já havia sido aprovada por unanimidade por duas vezes pelo Plenário do TCU, contando inclusive com voto favorável do mesmo relator do processo da MSVia”.

No meio jurídico, as colocações de Cedraz sobre ilegalidade da proposta acenderam um alerta amarelo sobre quais seriam os limites das repactuações firmadas entre o governo e as atuais concessionárias. Isso porque os contratos não estão sendo ajustados, mas completamente refeitos e mantidos com empresas que falharam em seus compromissos originais.

Das 14 propostas que serão repactuadas, três já passaram pelo crivo da Secretaria de Consenso e outras duas estão em fase de análise, a Via Bahia e a Fernão Dias. As demais estão nas mãos da ANTT e, logo no início de 2025, serão enviadas para negociação.

Na avaliação do advogado Fernando Vernalha, sócio do escritório Vernalha Pereira e especialista em contratos de concessões, as discussões em torno das propostas são resultado de um novo entendimento que passou a ser aplicado pela corte, mas não devem resultar em insegurança jurídica.

“Alterar contratos é algo natural. São concessões de longo prazo e isso está previsto. Não estamos discutindo se isso é válido ou não, mas a dimensão dessa repactuação. Até quando ela é válida e até quando passa a transfigurar o contrato. Entendo que isso tem que se dar em uma discussão caso a caso”, comentou.

Oferta ao mercado

Para dirimir questionamentos e dar uma blindagem de transparência às transações, o TCU e o governo chegaram a um acordo de que a repactuação de rodovias, uma vez confirmada com a concessionária que está à frente do trecho, será oferecida ao mercado, por meio de um tipo de leilão.

“Feita a repactuação, vamos abrir uma etapa de consulta pública de cem dias, para que todo mercado avalie aquela proposta de contrato, com toda transparência. Então, será feito um tipo de leilão, de processo competitivo. Se outra empresa quiser entrar, ela pode dar um lance mais agressivo, e elas poderão concorrer. Se houver disputa, fica com a concessão a melhor proposta”, disse à Folha o diretor-geral da ANTT, Rafael Vitale.

Críticos do modelo acreditam, porém, que esse modelo reduz o interesse de terceiros, uma vez que a concessionária que já está no trecho leva vantagem em ter toda a sua estrutura já montada, além de conhecer os detalhes daquela concessão como nenhuma outra empresa. Vitale, porém, acha que o jogo não está completamente jogado. “Acredito que podemos ter surpresas nessas ofertas.”

Plano de otimização dos contratos de concessão rodoviária federal

  • O governo espera estimular investimentos de R$ 110 bilhões nos próximos 15 anos com a revisão de 14 concessões de rodovias já firmadas. A estimativa é gerar 1,6 milhão de empregos, entre diretos e indiretos
  • Com a repactuação, o que se pretende é viabilizar obras paralisadas e obrigações suspensas, além de novas ações não previstas nos contratos originais. A negociação entre governo e empresas ocorre sob a supervisão do TCU.
  • Nos cálculos do Ministério dos Transportes, nos próximos três anos, R$ 26,5 bilhões podem ser investidos pela iniciativa privada
  • As mudanças serão feitas por meio de aditivos contratuais, dando como contrapartida a prorrogação dos contratos com prazos adicionais de 5, 10 e 15 anos, dependendo de cada caso.
  • Os estados com rodovias que mais concentrarão investimentos são Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro.

Related posts

Leave a Comment